Mulheres por trás das lentes: dobrando-se aos extremos pela sorte
Ter crescido na Colômbia – e também nesse universo online – moldou profundamente a maneira como crio arte e entendo minha identidade. Em um país repleto de valores superficiais e conservadores, onde a felicidade convive com a violência e onde rituais e crenças se entrelaçam na vida cotidiana, aprendi desde cedo que a busca por significado e valorização passa, muitas vezes, pela aparência e pelo ideal de beleza.
Como uma jovem que se sentia deslocada em meio a uma cultura tão contraditória, a internet surgiu como um refúgio seguro. Ali, pude me reinventar, explorar diferentes facetas da minha personalidade e descobrir interesses que, no mundo “real”, pareciam difíceis de serem expressos. Simultaneamente, esse ambiente virtual contribuiu para uma sensação de alienação, pois tornava cada detalhe da minha existência – inclusive a maneira como eu me mostrava – objeto de observação e julgamento.
A obsessão pelo autoconhecimento digital
Após deixar o ambiente familiar e, em 2023, começar a viver por conta própria, percebi que a cultura de autoajuda online havia se tornado uma obsessão. Em meio a esse turbilhão digital, os conteúdos pseudoespirituais ganhavam força, especialmente sob a hashtag #LuckyGirlSyndrome. Em vídeos curtos no TikTok, pessoas compartilhavam trechos de áudios que prometiam transformar a vida, envolvendo frequências “dobradamente energizadas”, sintetizadores suaves, sussurros invertidos e afirmações positivas. Mensagens inspiradoras, que diziam, por exemplo, “Se você ouvir isso, está entrando em um novo capítulo. Espere bênçãos dentro de 24 horas”, circulavam pela rede, evocando a sensação de que o simples ato de clicar ou prestar atenção poderia abrir as portas para uma nova realidade.
Eu mesma, em meio a essa imersão, desejava ser aquela “garota da sorte” que conquista tudo o que deseja ao seguir esses rituais à risca. Parte de mim fazia isso com uma pitada de ironia, uma tentativa de brincar com os excessos da cultura digital de autoajuda – mas havia também uma sinceridade profunda, um desejo real de transformar minha vida e de encontrar soluções para as inseguranças acumuladas ao longo dos anos.
A criação do mood board: transformando o quarto em um altar de afirmações
Em um gesto que misturava arte e terapia, decidi transformar meu quarto em um santuário pessoal, onde cada parede se tornava um espaço para as afirmações que encontrei online. Imprimi frases que iam do sentimento mais sincero ao humor ácido – reflexo da forma como a cultura digital alternava entre o autêntico e o surreal. Entre os recortes, havia mensagens como “Estou na minha zona de segurança”, “Não estou apertando o maxilar agora”, “Anjos estão observando 333”, “Eu sou luz” e, de maneira emblemática, “CLIQUE para ser salvo”. Essa colagem de palavras e imagens criou um cenário que despertava, a cada olhar, tanto a esperança quanto o questionamento sobre as imposições do autoaperfeiçoamento.
A escolha dos símbolos também foi fundamental. Notei que muitas das imagens de afirmações eram acompanhadas por esferas luminosas – orbes de luz que pareciam sintetizar como queremos nos sentir: leves, douradas, gentis, mágicas, poderosas e sem limites. Essa junção de aparência e mensagem me fez refletir sobre o preço da beleza e da autoestima em uma sociedade que, muitas vezes, dita padrões e regras impossíveis de serem seguidos sem que se perca parte da essência.
O palco teatral da “garota da sorte”
Inspirada por essa colisão de sentimentos, resolvi criar um cenário teatral onde pudesse me representar de diferentes formas, encarnando vários arquétipos de “garota da sorte”. Uma dessas versões foi a “garota yogi”, aquela que, em meio à busca incessante por equilíbrio e transformação, se curva até o extremo – quase literalmente – na esperança de atrair a sorte e as bênçãos que prometem tanto alívio e renovação. Essa imagem simbólica de se curvar, de se entregar a um ritual que vai além do físico, se tornou um poderoso questionamento sobre as imposições sociais e culturais que cercam o papel e a valorização do corpo feminino.
Ao montar esse cenário, não se tratava apenas de uma performance teatral, mas de uma investigação profunda sobre como a cultura digital molda nosso desejo de controle e transformação. Dentro da estética do “Lucky Girl Syndrome”, percebi que o ato de buscar a sorte em um clique ou em rituais preestabelecidos é, muitas vezes, uma forma de repackaging de um controle que se apresenta como empoderamento. Afinal, quando a sociedade dita que nossa beleza é nosso maior valor, o simples acionar de uma promessa digital pode se transformar em um mecanismo de validação que reforça padrões e limita as possibilidades de uma mudança genuína.
Repensando o valor da beleza e do empoderamento
Crescer em um ambiente onde a aparência física dita a nossa posição no mundo não é tarefa fácil. Na Colômbia, a cultura do visual extremo e até mesmo a normalização de procedimentos estéticos contribuem para a ideia de que a beleza é sinônimo de valor e merecimento. Simultaneamente, a moral católica ainda permeia muitos conceitos sobre gênero, sexualidade e família, o que pode aguçar contradições – onde a liberdade do autoexpressão colide com normas rígidas e pré-estabelecidas.
O que me fascina – e ao mesmo tempo me intriga – é como a cultura de autoajuda online reaparece como uma resposta a essas imposições. Ela se propõe a repaginar o controle, transformando-o em uma forma de suposto empoderamento feminino. No entanto, por trás dos discursos inspiradores e das promessas de transformação, muitas vezes se esconde uma lógica que reafirma a dependência de rituais e símbolos, perpetuando a ideia de que a mudança deve vir de um “produto” cultural pré-fabricado.
Nesse cenário, o projeto Lucky Girl Syndrome se torna uma interrogação sincera: será que, ao se submeter a esses rituais, as mulheres estão realmente conquistando autonomia, ou estariam, inadvertidamente, reforçando uma lógica em que suas conquistas ficam atreladas a padrões impostos? Essa é uma pergunta que ressoa não apenas na minha experiência pessoal, mas também na de tantas outras mulheres que, ao buscar respostas rápidas na vastidão da internet, se deparam com reflexos que, por mais confortantes que pareçam, podem minar nosso senso de individualidade e autenticidade.
A arte como meio de questionamento e transformação
Meu trabalho se desenvolveu justamente a partir desse ponto de interrogação. Ao criar performances e cenários que mesclam a estética do autoaperfeiçoamento com a crítica social, procuro romper com a ideia de que o corpo feminino existe apenas para servir a padrões estéticos impostos. Cada instalação, cada foto e cada gesto são, na verdade, uma rejeição silenciosa a um sistema que muitas vezes se disfarça de empoderamento, mas que, na prática, limita a verdadeira liberdade de expressão.
Através do Lucky Girl Syndrome, convido o espectador – principalmente as mulheres que sentem, no dia a dia, o peso de estereótipos e expectativas irreais – a olhar para dentro e questionar as práticas que muitas vezes são vendidas como caminhos para a felicidade. Em vez de buscar uma transformação instantânea ou milagrosa, a proposta é refletir sobre o que realmente significa ser livre para se expressar, amar o próprio corpo e, acima de tudo, se encontrar em um mundo repleto de ruídos e imposições.
Essa jornada de autoconhecimento, embora permeada por dúvidas e desafios, é também um convite à transformação. É um chamado para que cada mulher se permita respirar fundo, reconhecer suas próprias inseguranças e, com coragem, reescrever a própria história. Afinal, a verdadeira sorte não está em seguir um roteiro pré-definido, mas em encontrar, em cada momento, a capacidade de se reinventar e celebrar a singularidade de ser exatamente quem se é.
Reflexões sobre a economia da esperança
No cerne do projeto Lucky Girl Syndrome, reside a interrogação sobre a “economia da esperança” – um conceito que descreve como, em tempos de incerteza, as pessoas recorrem a rituais e práticas que prometem uma transformação imediata. Esse fenômeno não é exclusivo do universo digital; ele reflete um anseio profundo por sentido e estabilidade em meio a um mundo em constante mudança. Para muitas mulheres, a busca por bênçãos e sorte se torna uma forma de lidar com os desafios diários, uma tentativa de colocar ordem no caos e de encontrar, mesmo que momentaneamente, um porto seguro.
Entretanto, ao mesmo tempo em que esses rituais oferecem um conforto imediato, eles também podem mascarar as questões estruturais que deixam tantas de nós vulneráveis. A pressão para se adequar a padrões inalcançáveis e a crença de que a felicidade depende de um clique ou de uma meditação guiada podem levar a um ciclo de insatisfação e autocrítica. Assim, a reflexão proposta pelo projeto não é apenas estética, mas também política e social.
Ao investigar como a cultura digital repacoteia a noção de empoderamento, procuro mostrar que a verdadeira transformação não se resume a seguir uma receita pronta. Ela exige questionar o status quo, desafiar os rótulos que nos foram impostos e, sobretudo, reconhecer que a jornada de autoconhecimento é longa e repleta de nuances. O espaço digital pode ser um aliado nessa busca, mas também é fundamental saber separar o que realmente nutre nossa essência daquilo que apenas reforça expectativas externas.
Descobrindo a verdadeira liberdade interior
Em meio a esse turbilhão de informações, desafios e promessas vazias, é essencial lembrar que a liberdade verdadeira começa de dentro para fora. Cada mulher tem o direito – e a responsabilidade – de se reconectar com sua própria força, reconhecer suas inseguranças e transformar seus medos em combustível para a mudança. A arte, nesse contexto, torna-se uma ferramenta poderosa para expressar essas emoções, para externalizar o que muitas vezes fica preso e para inspirar outras a fazerem o mesmo.
O meu convite, através do Lucky Girl Syndrome, é justamente esse: olhar para dentro, abraçar a complexidade de ser mulher e, em meio a tantas contradições, encontrar a beleza que existe na imperfeição e na autenticidade. Não se trata de seguir uma fórmula mágica para a felicidade, mas de compreender que cada passo – mesmo os mais hesitantes – é parte de uma jornada contínua de autodescoberta e crescimento.
Ao repensar a “economia da esperança” e questionar a lógica por trás dos rituais de autoajuda, estou, também, desafiando o modelo tradicional de empoderamento que muitas vezes nos condiciona desde cedo. É uma proposta de ressignificação, onde o valor da mulher não está atrelado à sua aparência ou ao cumprimento de um conjunto de expectativas, mas sim à sua coragem de ser, de mudar e de se reinventar constantemente.
Em um mundo onde as redes sociais frequentemente mascaram a realidade com filtros e promessas, é fundamental resgatar a noção de que a verdadeira sorte não vem de um “clique para ser salvo”, mas sim do reconhecimento da nossa própria capacidade de transformação. Cada gesto, cada pequena vitória e cada desafio superado são testemunhos de uma força interior que transcende qualquer ideologia ou tendência passageira.
Assim, a obra se torna um manifesto silencioso: um convite para que possamos olhar para além das meditações guiadas e dos áudios motivacionais, e redescobrir a beleza de sermos autênticas, imperfeitas e, sobretudo, humanas. Que possamos nos libertar das amarras de um sistema que busca padronizar nossa essência e, em troca, celebrar a singularidade de cada trajetória.
Em última análise, o Lucky Girl Syndrome é mais do que uma performance artística – é um chamado à transformação interior. Convida cada mulher a questionar o que realmente significa buscar sorte e bênçãos, e a reconhecer que, na verdade, a verdadeira mudança começa quando decidimos parar de nos comparar com padrões inalcançáveis e abraçar a nossa própria jornada. É a celebração de uma liberdade construída a partir do autoconhecimento, da coragem de se reinventar e da capacidade de encontrar, em meio às adversidades, a luz que reside dentro de cada uma de nós.
Ao transformar meu quarto em um espaço repleto de afirmações e simbolismos, eu também proponho um novo olhar sobre o que significa existir em um mundo saturado por mensagens prontas. Convido todas as mulheres a se permitirem questionar, a se curvar – não em submissão, mas em um gesto consciente de abertura para a transformação – e a descobrir que, por trás de cada ritual, há a possibilidade de um recomeço genuíno.
Que possamos, juntas, encontrar um caminho onde a sorte não seja um destino ditado por algoritmos ou tendências passageiras, mas sim a expressão da nossa resistência e da nossa capacidade de reinventar o cotidiano com empatia, autenticidade e amor-próprio. Porque, no final das contas, a verdadeira sorte é aquela que construímos a partir do reconhecimento da nossa própria beleza e da nossa força inata, independente de qualquer promessa digital ou imposto cultural.

Stella Vox é a criadora do Palavra Magnética, um espaço onde compartilha sua jornada real com afirmações positivas como ferramenta de transformação pessoal. Com sua sensibilidade, ela mostra como palavras intencionais podem moldar pensamentos, sentimentos e criar uma vida alinhada com o amor-próprio.